segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Macarrão colorido

Aparentemente sem razão, ela se lembrou com clareza, do tempo em que frequentou a creche M. D.
Devia ter três ou quatro anos e tinha o cabelo curto por causa dos piolhos.
O uniforme era azul e preto. Uma calça e uma jaquetinha de um tecido de acrílico comum. Uma camiseta branca padrão. ( A mãe usava um stencil e tinta para tecido para reproduzir o nome da creche na hering branca).

Lembrou de olhar para cima com frequência e ver uma torre de igreja a direita do pátio tapando completamente o sol da manhã. O pátio era sempre úmido e escuro.

Lembra de catar physalis no chão do pátio e pendurar nas orelhas como se fossem brincos de princesa. O cabelo curto às vezes era um problema.
Não se lembra de nenhuma criança.

Havia uma sala, que naquela época parecia enorme, onde o chão era coberto de colchonetes azuis. Toda tarde, meia duzia de tias se revezavam para colocar as crianças para dormir.

E depois, eram acordadas por músicas infantis saindo do cassete rouco, às vezes um pouco engasgado.
Algumas acordavam chorando. Visivelmente manhosas.
A maioria acordava amassada, atordoada, sem entender o que era aquele lugar. Sem entender que estava viva.

 Como podia se lembrar com tanta clareza dessas coisas?

Daquela sensação de deslumbramento e angústia simultâneos.
Ao ver que o céu cinza do pátio era muito alto, mais longe dela do que das tias que andavam cacarejando e gritando num dialeto enlouquecido de palavras ditas propositadamente erradas...

Depois havia o lanche da tarde. Numa canequinha marrom de plástico grosso, tinha um doce de arroz açucarado mas não tinha canela...
Vontade de morder aquele plástico grosso. Todas as bordinhas eram meio moídas. Centenas de vezes usadas aquelas canequinhas. Centenas de vezes, quisera desesperadamente moer a borda da caneca.

Sempre deixava metade do doce. Sabia que o gosto não era bom, mas não reclamava. Tinha sempre a tática de demorar demais e assim ter que largar a canequinha e seguir para a próxima atividade.
As tias mandavam recados para a mãe pedindo para que a levasse ao médico. Podiam ser os vermes.
Não se espera consciência de uma criança tão pequena.

A única coisa que a fazia voltar a esse mundo. Aliás, a única coisa que se recorda, capaz de tirá-la totalmente do sério era o macarrão colorido.

Um penne de três cores diferentes. Vermelho, amarelo e verde.

Ela se lembrou da primeira vez que viu esse prato.
Não sabia direito o que fazer. Cada canudinho tinha uma textura, e eram servidos semi crus.
Podia ver uma fumacinha saindo do prato e parecia apetitoso, mas o cheiro era ruim.
Tinha um cheiro de "sopa de meia" como conseguiu descrever mais tarde.
Demorou para vencer o medo e provar.

Vomitou...

Levou uma bronca.
Castigo.
Precisa comer tudo!

A técnica da canequinha não funcionava no jantar...

Que desespero!

Só nessa hora pensava na mãe e procurava a saída a todo custo.
Sabia que já era a hora de ir pra casa.
E fazia um grande show de birra com todas as forças que tinha.

"Eu x macarrão colorido".

Era entregue pessoalmente para a mãe duas vezes por semana. Passavam todo o relatório do dia.
A mãe se justificava com certas questões pessoais.
Criança é assim mesmo...

Ninguém sabia que ela sabia que estava viva.

E duas vezes por semana serviam macarrão colorido...


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