quarta-feira, 19 de novembro de 2014

I

Preciso escrever-te uma carta boba.
Dessas que parecem velharia infame,
pieguice sem limites
que as mães escrevem para as seguintes gerações.

Perdoe-me pelo arritmo,
pela segunda do singular,
pela ênclise...
Isso, tu verás que é tão inútil
quanto a rima
que esqueci de te apresentar.

Preciso que saibas coisas tontas.
Como, por exemplo, que eu o amo.
E que tenho medos pueris de te encontrar.

Quero que entendas que tenho medo.
De ti,
do quão forte podes segurar os meus dedos
e o meu peito
quando eu estiver a te ninar.

Nas minhas fantasias egocêntricas, sei que guardarás
tais pedaços da minha fala
quando eu daqui me aporrinhar
e te abandonar ao sabor do teu próprio tempo,
teu próprio corpo,
teu próprio medo.

Preciso que saibas que passei dezenas de horas
a te imaginar pessoa
a sofrer essa mesma angústia
que vivo agora.







quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Materlidão

Sozinha.
É sozinha que eu te cozinho, criaturinha,
na minha barriga,
numa sopa amniótica primordial.
Ninguém ao meu redor seria capaz de diminuir essa solidão...
Tudo o que é dito é tão raso.
Não me acalanta,
não me alimenta.

(A verdadeira empatia, quando há, é tão silenciosa que faz doer o meu ouvido).

Nunca saberia como é esse choro latente,
essa sensação pavorosa,
se não a permitisse...
O gozo não valeria nem um segundo dessa agonia.

O gozo não valeria a dor
de te saber ser finito, filho.
Nem da minha própria morte, lenta, em nove meses...

Já não serei esta que conheço
nem nenhuma outra que já fui.

Serei uma
ainda mais inacabada.
Ora realmente amputada
de nossa placenta.






sábado, 31 de maio de 2014

Uma palavra
Que lancei ao vento oeste,
Correu a Leste
Sul e Norte.
Abriu meu corpo como um abacate.

Bradei pela tua vinda.
Barganhei pela tua vida.
E eis que me apareces
Obsidiana crua
Talhada em flecha
Dia a dia
No ventre da terra.

Aguardarei
O dia para te lançar
Flecha corredeira
A furar nuvens e estrelas.
A percorrer anos e ventos
A buscar sentido
Nas coisas sem sentido.

Quando estiveres pronta,
Te lançarei certeira
De dentro de mim
Para o céu, o mar
E seus confins...

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Boi mudo

Boi mudo
Chibata no lombo.
Olhar tapado,
Compasso ribombo.

Que será do boi mudo?
O último a ser amado.
O primeiro a ser traído.

Que será desse bicho?
Zebu encarnado
Opulento macho
Pasto esmagado.

De onde tira a força, meu boi?
De onde tira o silêncio?
De onde tira essa beleza sanguínea,
Essa carne luzidia?

Boi mudo,
Espáduas comidas.
Gasto, roído

O que nos desavia, boi querido?
Meu vocábulo encolhido.
Teus calos sangrados.
Nossos lombos reatados?








terça-feira, 6 de maio de 2014

Monotom

Um e dois
No mesmo passo
Serrilham o compasso
Binário.
Breviário
Da existência.

Todos os dias
São.
E vivem os pormenores
Desse estado
em solidão

No entanto,
Tal música
Bem toada.
Na escada numerada
Dos dias
Só se faz em pares binários
Ternos ternários
Não raros quaternários
Passos que dão.

Um e dois são amigos e são bons.
Tem poucos preconceitos
Ou os tingem de outros tons...

terça-feira, 22 de abril de 2014

Na noite espessa da tua inexistência,
Eu não podia respirar.
Estava petrificada,
Esporulada,
Aguardando tua vinda.

Foi quando
Tu saístes
do mundo das idéias,
E com cliques frenéticos,
Viestes habitar a minha barriga
Que eu pude acordar desse sono tenebroso.
E como quem sai das águas afogado,
Respirei cheia de ânsia.

Agora,
Vens usar minha carne para tecer os teus cabelos,
Escolher com lascívia, das tintas do meus genes, as cores das tuas íris.
Pintar com detalhes, pintas na tua pele
E esconder os meus segredos debaixo dela.

Já não sou outra,
A não ser terra macia.

O Tanto de mim, que precisares,
Para ser um broto firme,
Árvore frondosa.
Podes levar, podes comer...





quinta-feira, 17 de abril de 2014

Ninguém



Ninguém suporta um mal humorado

Ninguém aguenta quem muito reclama

Ninguém gosta de quem fala demais

Ninguém quer uma mulher fácil

Ninguém ama um assassino


Ninguém, é um tipo de deus
Excede em benevolência a qualquer outro.




Puta

Uma puta, com as pernas abertas,
Feito uma mariposa enorme,
Pousou numa roseira enquanto eu dormia.

A puta ensanguentada,
Só sabia que era puta pela cara.
Nem pelo sexo escancarado,
Nem pelo cabelo-Madalena,
Nem por outra coisa.

Era puta por causa daqueles olhos
E tive certeza sem perguntar.

Ela balançou na roseira,
Mariposa safada
Grunhiu:

Nada presta de ti, mulher coxinha.
Hipocrisia Maria,
Tu me desejas mais que os machos.
Queres ser a minha carne
E me cospe na cara.

Nada presta de ti,
Mulher azeda.
Senhora de véu
Com a boceta acesa.

Nada presta de ti...

Caiu empalada na roseira
E morreu dando risada

Morreu dando risada,
Aquela puta.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Se fosse Deus provável,
Veja bem, provável, e não possível...
Tão mais fácil seria suportar o engarrafamento,
O insosso dos pratos rápidos,
A comédia do dia-a-dia.
Assim, não seria.

Talvez eu não fosse tão
Gauche Macabéa.
Talvez não fosse tão Ignorância.
Ou fosse Toda.

Talvez me inundasse tanta ciência,
Que eu inteira mudaria de cor.
Para um pálido azul.
Ou um esquálido amarelo.

Se fosse Deus provável,
Tudo teria notas de sentido.
Desde as ações na Bolsa
Até a morte de um menino.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Adolesce-te

Acordou e foi direto ao espelho
Ver se o tumor amarelo havia partido
Deixado as bochechas
Redondas em paz.

Não havia.

Estava lá ainda aquele farol
Dizendo: apressa-te que o tempo urge.
Que o teu sono será curto.
Mas logo te estendes morto.

Apressa-te em ebulir
Enquanto há fogo
Cumprir teu alvo razoável.
Espalhar seus pedaços pelo chão.

Ah, se todo menino soubesse...
Que o virar da ampulheta é tão cruel
Quanto a segunda guerra.
E as provas de trigonometria.


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O homem que não diz "Eu te amo"

O amor romântico é uma prisão.
Injusta,
claustrofóbica,
invariavelmente egoísta.

É, antes de tudo, um acidente evolutivo
-antropologicamente falando-.

E os homens sabem bem disso.

Só se apaixonam quando estão atordoados...
Ou cansados.
Ou loucos.

Homens e seu meio cromossomo,
perneta,
vagam pelas gerações... equilibrados,
rectos,
cientes de sua racionalidade.
Flor da essência humana.

Todo homem tem um pequeno derrame
ao dizer 'Eu te amo"...




segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Macarrão colorido

Aparentemente sem razão, ela se lembrou com clareza, do tempo em que frequentou a creche M. D.
Devia ter três ou quatro anos e tinha o cabelo curto por causa dos piolhos.
O uniforme era azul e preto. Uma calça e uma jaquetinha de um tecido de acrílico comum. Uma camiseta branca padrão. ( A mãe usava um stencil e tinta para tecido para reproduzir o nome da creche na hering branca).

Lembrou de olhar para cima com frequência e ver uma torre de igreja a direita do pátio tapando completamente o sol da manhã. O pátio era sempre úmido e escuro.

Lembra de catar physalis no chão do pátio e pendurar nas orelhas como se fossem brincos de princesa. O cabelo curto às vezes era um problema.
Não se lembra de nenhuma criança.

Havia uma sala, que naquela época parecia enorme, onde o chão era coberto de colchonetes azuis. Toda tarde, meia duzia de tias se revezavam para colocar as crianças para dormir.

E depois, eram acordadas por músicas infantis saindo do cassete rouco, às vezes um pouco engasgado.
Algumas acordavam chorando. Visivelmente manhosas.
A maioria acordava amassada, atordoada, sem entender o que era aquele lugar. Sem entender que estava viva.

 Como podia se lembrar com tanta clareza dessas coisas?

Daquela sensação de deslumbramento e angústia simultâneos.
Ao ver que o céu cinza do pátio era muito alto, mais longe dela do que das tias que andavam cacarejando e gritando num dialeto enlouquecido de palavras ditas propositadamente erradas...

Depois havia o lanche da tarde. Numa canequinha marrom de plástico grosso, tinha um doce de arroz açucarado mas não tinha canela...
Vontade de morder aquele plástico grosso. Todas as bordinhas eram meio moídas. Centenas de vezes usadas aquelas canequinhas. Centenas de vezes, quisera desesperadamente moer a borda da caneca.

Sempre deixava metade do doce. Sabia que o gosto não era bom, mas não reclamava. Tinha sempre a tática de demorar demais e assim ter que largar a canequinha e seguir para a próxima atividade.
As tias mandavam recados para a mãe pedindo para que a levasse ao médico. Podiam ser os vermes.
Não se espera consciência de uma criança tão pequena.

A única coisa que a fazia voltar a esse mundo. Aliás, a única coisa que se recorda, capaz de tirá-la totalmente do sério era o macarrão colorido.

Um penne de três cores diferentes. Vermelho, amarelo e verde.

Ela se lembrou da primeira vez que viu esse prato.
Não sabia direito o que fazer. Cada canudinho tinha uma textura, e eram servidos semi crus.
Podia ver uma fumacinha saindo do prato e parecia apetitoso, mas o cheiro era ruim.
Tinha um cheiro de "sopa de meia" como conseguiu descrever mais tarde.
Demorou para vencer o medo e provar.

Vomitou...

Levou uma bronca.
Castigo.
Precisa comer tudo!

A técnica da canequinha não funcionava no jantar...

Que desespero!

Só nessa hora pensava na mãe e procurava a saída a todo custo.
Sabia que já era a hora de ir pra casa.
E fazia um grande show de birra com todas as forças que tinha.

"Eu x macarrão colorido".

Era entregue pessoalmente para a mãe duas vezes por semana. Passavam todo o relatório do dia.
A mãe se justificava com certas questões pessoais.
Criança é assim mesmo...

Ninguém sabia que ela sabia que estava viva.

E duas vezes por semana serviam macarrão colorido...