sábado, 3 de janeiro de 2015

II


Dias atarraxados e secos.
Duas peças seladas por sangue oxidado.
Mais forte que qualquer ferrugem,
Qualquer tinta.

São estes os dias que nos levam 
Até o teu primeiro fôlego.
Quando hás de te afogar na imensidão do ar.
Que tanto parece não existir.

Será preciso muita água.
Muitos fluídos
Para que te descoles de mim.
Uma avalanche que me partirá ao meio
E te extrairá como fruto macio de uma casca dura.

Haverá dor, porque sempre há.
Haverá dor em mim e em ti.
Haverá uma tênue linha entre vida e morte
E nela eu e tu nos entenderemos, cambaleantes.

Nos olharemos e saberemos quem somos.
E um pouco da tua agonia me fará feliz.
Quando gaspeares a atmosfera pela primeira vez
E gritares pela dor que te causará,
Eu tambem gritarei.

Por ora, seguimos atarraxados,
Não prometo mais que isso...




quarta-feira, 19 de novembro de 2014

I

Preciso escrever-te uma carta boba.
Dessas que parecem velharia infame,
pieguice sem limites
que as mães escrevem para as seguintes gerações.

Perdoe-me pelo arritmo,
pela segunda do singular,
pela ênclise...
Isso, tu verás que é tão inútil
quanto a rima
que esqueci de te apresentar.

Preciso que saibas coisas tontas.
Como, por exemplo, que eu o amo.
E que tenho medos pueris de te encontrar.

Quero que entendas que tenho medo.
De ti,
do quão forte podes segurar os meus dedos
e o meu peito
quando eu estiver a te ninar.

Nas minhas fantasias egocêntricas, sei que guardarás
tais pedaços da minha fala
quando eu daqui me aporrinhar
e te abandonar ao sabor do teu próprio tempo,
teu próprio corpo,
teu próprio medo.

Preciso que saibas que passei dezenas de horas
a te imaginar pessoa
a sofrer essa mesma angústia
que vivo agora.







quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Materlidão

Sozinha.
É sozinha que eu te cozinho, criaturinha,
na minha barriga,
numa sopa amniótica primordial.
Ninguém ao meu redor seria capaz de diminuir essa solidão...
Tudo o que é dito é tão raso.
Não me acalanta,
não me alimenta.

(A verdadeira empatia, quando há, é tão silenciosa que faz doer o meu ouvido).

Nunca saberia como é esse choro latente,
essa sensação pavorosa,
se não a permitisse...
O gozo não valeria nem um segundo dessa agonia.

O gozo não valeria a dor
de te saber ser finito, filho.
Nem da minha própria morte, lenta, em nove meses...

Já não serei esta que conheço
nem nenhuma outra que já fui.

Serei uma
ainda mais inacabada.
Ora realmente amputada
de nossa placenta.






sábado, 31 de maio de 2014

Uma palavra
Que lancei ao vento oeste,
Correu a Leste
Sul e Norte.
Abriu meu corpo como um abacate.

Bradei pela tua vinda.
Barganhei pela tua vida.
E eis que me apareces
Obsidiana crua
Talhada em flecha
Dia a dia
No ventre da terra.

Aguardarei
O dia para te lançar
Flecha corredeira
A furar nuvens e estrelas.
A percorrer anos e ventos
A buscar sentido
Nas coisas sem sentido.

Quando estiveres pronta,
Te lançarei certeira
De dentro de mim
Para o céu, o mar
E seus confins...

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Boi mudo

Boi mudo
Chibata no lombo.
Olhar tapado,
Compasso ribombo.

Que será do boi mudo?
O último a ser amado.
O primeiro a ser traído.

Que será desse bicho?
Zebu encarnado
Opulento macho
Pasto esmagado.

De onde tira a força, meu boi?
De onde tira o silêncio?
De onde tira essa beleza sanguínea,
Essa carne luzidia?

Boi mudo,
Espáduas comidas.
Gasto, roído

O que nos desavia, boi querido?
Meu vocábulo encolhido.
Teus calos sangrados.
Nossos lombos reatados?








terça-feira, 6 de maio de 2014

Monotom

Um e dois
No mesmo passo
Serrilham o compasso
Binário.
Breviário
Da existência.

Todos os dias
São.
E vivem os pormenores
Desse estado
em solidão

No entanto,
Tal música
Bem toada.
Na escada numerada
Dos dias
Só se faz em pares binários
Ternos ternários
Não raros quaternários
Passos que dão.

Um e dois são amigos e são bons.
Tem poucos preconceitos
Ou os tingem de outros tons...

terça-feira, 22 de abril de 2014

Na noite espessa da tua inexistência,
Eu não podia respirar.
Estava petrificada,
Esporulada,
Aguardando tua vinda.

Foi quando
Tu saístes
do mundo das idéias,
E com cliques frenéticos,
Viestes habitar a minha barriga
Que eu pude acordar desse sono tenebroso.
E como quem sai das águas afogado,
Respirei cheia de ânsia.

Agora,
Vens usar minha carne para tecer os teus cabelos,
Escolher com lascívia, das tintas do meus genes, as cores das tuas íris.
Pintar com detalhes, pintas na tua pele
E esconder os meus segredos debaixo dela.

Já não sou outra,
A não ser terra macia.

O Tanto de mim, que precisares,
Para ser um broto firme,
Árvore frondosa.
Podes levar, podes comer...